
Há alguns meses tive o prazer de ler o excepcional Story, do Robert McKee, livro sobre cinema, roteiro e narrativa. Ao ler o trecho a seguir, fui correndo ao computador transcrevê-lo, sabendo que seria útil algum dia:
"A verdadeira personagem é revelada nas escolhas que um ser humano faz sob pressão - quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial da personagem. Pressão é essencial. Escolhas feitas sem nenhum risco significam pouco. Se uma personagem escolhe contra a verdade em uma situação em que uma mentira não lhe daria nada, a escolha é trivial, o momento não expressa nada. Mas se a mesma personagem insiste na verdade quando uma mentira poderia salvar sua vida, podemos então perceber que a honestidade está no núcleo da sua natureza".

Heavy Rain se apóia no conceito apresentado por McKee para desenrolar uma complexa trama e nos envolver com os personagens, ao mesmo tempo em que estamos jogando. Até hoje a estrutura mais utilizada para contar uma história e apresentar um personagem nos jogos é através das cutscenes, que acontecem paralelamente ao jogo de fato, como explicado no artigo da semana retrasada. Os momentos em que o jogador está atirando, pulando, correndo, explorando, enfim, atuando, são, geralmente, os menos relevantes para a narrativa, uma vez que apenas conectam o jogador de um ponto a outro da história – ou de uma cutscene a outra, onde a trama geralmente se desenrola. Em Heavy Rain, a atuação do jogador acontece simultaneamente ao desenvolvimento da história – o jogo é a história. Cada decisão tomada pelo jogador incrementa a história em algum nível ou ajuda a compor a personalidade de um personagem.

Portanto, não faz muito sentido dizer que Heavy Rain não daria um bom filme, uma vez que toda a sua estrutura (incluindo o roteiro) foi pensada levando em consideração a participação do jogador e a tomada de decisões. Heavy Rain não quer ser cinema, apenas utiliza sabiamente dezenas de recursos técnicos e dispositivos de narrativa que o cinema desenvolveu durante mais de um século de história para incrementar a própria experiência interativa e contar uma boa história. Afinal, qual o problema de tomar emprestado alguns elementos de uma mídia tão poderosa para contar histórias enquanto a interatividade é preservada? Ela pode não existir em excesso, como no exemplo anterior de GTA, mas existe em quantidade suficiente para tornar a experiência significante.
A influência do cinema não se limita aos precisos cortes e ângulos de câmera ou ao ritmo da narrativa. Pela primeira vez vemos um jogo em que os personagens são atores de verdade, que não se limitam a dar vida aos personagens apenas através de ações básicas para gerar ciclos de animação, como correr, pular ou durante cutscenes etc. A expressão corporal e facial está presente em quase todas as cenas, dos diálogos mais banais aos momentos de maior tensão. E tudo soa tão natural para nós que, sem perceber, criamos um elo emocional com aquele ser humano. Apesar do roteiro forçar a barra vez ou outra, o que pode causar a quebra da magia da realidade do jogo, o tempo todo estamos vendo personagens com atitudes e comportamentos tão próximos de seres humanos, criados com base em arquétipos (ainda que não esteja totalmente livre dos estereótipos e dos clichês), que nos identificamos com cada um deles.

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