quinta-feira, 4 de março de 2010

Heavy Rain: game design e narrativa em harmonia


Heavy Rain é um jogo controverso. Não me refiro necessariamente às cenas de sexo, nudez ou consumo de drogas que o título apresenta, mas ao jogo em si. Trata-se de uma experiência de jogo tão diferente daquelas que estamos acostumados que não me surpreende o fato de muitos estarem torcendo o nariz. O ser humano tem a tendência de estranhar e fazer cara feia para tudo que é novo ou simplesmente foge do que estamos habituados. Mas o que acontece de fato quando jogamos Heavy Rain? Aliás, o que é Heavy Rain? Através deste texto, pretendo analisar o jogo sob o ponto de vista do game design e da narrativa. Não é da minha intenção, neste momento, me focar nos elementos cinematográficos. Vale lembrar também que evitei os spoilers ao máximo, contudo, cito algumas passagens do jogo.

A controvérsia começou quando o próprio diretor e roteirista do jogo, David Cage, referiu-se a Heavy Rain como uma espécie de filme interativo. Apesar da aclamação geral pela maior parte da crítica especializada, alguns veículos se mostraram pouco favoráveis às ideias e experiência do jogo. Alguns o descrevem como uma mera evolução de Dragon's Lair ou como uma coletânea de Quick Time Events. Mas, afinal, Heavy Rain é um jogo ou um filme?

A resposta parece óbvia, mas é um pouco nebulosa: Heavy Rain é um jogo (duh). Tem interação, regras (um conjunto de lógica), limites, conflito... Enfim, jogo. Porém, ele se utiliza de tantos recursos do cinema, além de apresentar uma experiência tão centrada na narrativa que tais elementos acabam se sobressaindo.

Uma das principais características dos jogos é seu fator emergente, resultante da complexidade de seus sistemas. The Sims é um bom exemplo (ainda que desperte outras questões, como a dualidade brinquedo/jogo, mas que não são pertinentes para a gente neste momento). Embora The Sims ofereça a possibilidade de contar histórias, no jogo de Will Wright não existe narrativa da maneira tradicional, isto é, um enredo com narrador, protagonista, antagonista, conflito, clímax etc. O que nós temos ali são possibilidades, milhares de possibilidades baseadas em um conjunto de regras de interação, que quando combinadas podem representar uma ou mais histórias para o jogador. Ele é livre para fazer o que bem entender com essas múltiplas possibilidades, e o resultado é uma experiência emergente, isto é, que emerge das ações do jogador – das quais faz surgir micro-histórias do cotidiano. Resumindo: The Sims traz uma experiência de jogo bottom-up, que nasce e cresce progressivamente (de baixo para cima) de acordo com as ações do jogador. Você pode jogar um milhão de vezes e todas as partidas serão únicas.

Há de se convir, porém, que as histórias de The Sims não possuem o apelo emocional ou a carga psicológica das narrativas tradicionais, como a literatura. Os personagens aqui são apenas agentes de interação, através dos quais os jogadores podem interferir no mundo do jogo como bem entenderem, e não personagens de fato, com medos, desejos, motivações, ambições, costumes, ideais. Os jogadores podem, inclusive, tomar decisões totalmente contraditórias e incompatíveis com seu personagem, como se apaixonar loucamente, casar e, minutos depois, romper o casamento, apenas por diversão. Um personagem redondo, complexo, criado com base nas emoções reais de um ser humano, jamais tomaria esse tipo de decisão – a não ser que estejamos falando da Britney Spears, mas aí não conta!

Em GTA acontece algo parecido. Aqui nós temos uma estrutura de jogo emergente, como em The Sims: um playground em que o jogador pode brincar com o espaço de possibilidades oferecido pelo jogo, ainda que os objetivos sejam mais claros uma vez que o jogo é guiado por um enredo. Portanto, se por um lado temos uma estrutura de jogo bottom-up (emergente), por outro, temos um enredo estritamente linear (a sequência de cutscenes) com personagens, situações e conflitos, criado a partir dos conceitos básicos de narrrativa, que delineiam nossa experiência e limitam nossas ações. As narrativas são, por sua natureza, top-down, uma vez que pressupõe-se que haja um narrador que narra os acontecimentos de uma trama, geralmente de forma linear, como todo e qualquer bom livro, conto, notícia ou filme – sem a participação do leitor, expectador etc., portanto, não emergente. É claro que sempre existem aquelas obras que tentam quebrar este paradigma ou brincar com as linguagens, mas não vêm ao caso.


A maioria dos jogos se encaixam nessa estrutura de GTA, mesclando uma experiência de jogo bottom-up (liberdade de ação, múltiplas maneiras de resolver um problema, exploração do espaço de possibilidades) com uma narrativa top-down (linear, autônoma). É aquela típica estutura “jogo > cutscene > jogo > cutscene”. E, tal como GTA, a maioria dos jogos nos apresentam histórias inconsistentes, uma vez que o personagem ora tem controle sobre si próprio (nas sequências de animação, tomando decisões por conta própria, sem a influência do jogador), ora é controlado pelo jogador. Portanto, as decisões do jogador são, obrigatoriamente, as decisões do personagem (por mais que elas não reflitam a real personalidade dele), mas nem sempre as decisões do personagem são compartilhadas pelo jogador.

Para facilitar o entendimento, um exemplo: durante as sequências animadas de GTA 4, temos acesso a um pequena porção do perfil psicológico do protagonista Nico Belic. Temos uma noção de seu caráter e sabemos que, por mais que ele seja corrupto e esteja envolvido com o tráfico e a criminalidade, ele, como um ser humano dotado de bom senso em sua realidade, jamais sairia dirigindo loucamente passando por cima de dezenas de humanos, atirando com sua metralhadora em velhinhas na rua e lançando granadas nas viaturas policiais. Ele sabe que, eventualmente, ele seria pego e passaria o resto de sua vida na cadeia. No entanto, é isso que você faz em boa parte do tempo em GTA. E mesmo que haja uma consequência para ações incoerentes com as atitudes, caráter ou senso de ética do personagem, nada te impede de continuar o jogo, pois elas são mínimas. Nada é irreversível.

Na verdade, a maioria dos jogos possui esse tipo de inconsistência de narrativa. É comum, por exemplo, nos RPGs, um personagem ser gravemente ferido ou morto com um único golpe durante a dramática sequência de animação que procede uma batalha envolvendo chuva de meteoros, invocação de deuses e paredes de fogo. Se não fosse inconsistente, o personagem morto simplesmente receberia um Phoenix Down e estaria tudo bem.


Eis que surge Heavy Rain nos propondo uma nova forma de narrativa para os videogames. Talvez não novo, mas definitivamente impactante. Em relação a GTA ou The Sims, o jogo da Quantic Dream tem um fator emergente mínimo, mas interessante por conta de sua multinearidade e centenas de micro ou macro-ramificações no enredo. Jogos centrados na narrativa geralmente oferecem uma experiência de jogo menos emergente, como os adventures, e isso significa, a grosso modo, menos liberdade para o jogador e possivelmente linearidade (que são as características básicas da narrativa). Portanto, jogos com um fator emergente baixo possuem um nível de replay equivalente. Embora a falta de emergência pareça ir contra os conceitos do bom game design, ela permite uma manipulação muito melhor dos elementos de narrativa. Heavy Rain, por sua vez, consegue mesclar narrativa com gameplay de forma interessante, mantendo a riqueza de uma história humana, contemporânea e realista sem tirar do jogador a liberdade de ações (e opções) ou a multilinearidade. Ele consegue estabelecer um equilíbrio entre narrativa (top-down) e videogame (bottom-up), façanha que poucos jogos conseguiram até hoje.

Absolutamente todos os jogos são focados em decisões – é uma característica básica do jogo. A diferença de Heavy Rain para todos os jogos é que aqui as decisões do jogador são irreversíveis e possuem impacto no desenrolar da trama. O jogador precisa se colocar na situação do personagem para tomar as decisões com base em seu ponto de vista. “O que você faria se...?” É basicamente um jogo de interpretação de papéis , um role playing game, porém sem aquela infinidade de números e estatísticas. Outros jogos já fizeram isso antes, é claro, como os RPGs da Black Isle, Mass Effect etc. Porém, Heavy Rain segue uma linha completamente diferente.

Heavy Rain é um dos poucos jogos a manter uma coerência entre narrativa e gameplay – até porque, os dois elementos se confundem. Suas decisões são limitadas às atitudes, caráter e estado de espírito e emocional de cada personagem. Portanto, o jogador não pode fazer o que bem entende o tempo todo, pois dentro da coerência da realidade do jogo, ele É o personagem. Na cena em que Madison encontra Ethan machucado e desmaiado e decide medicá-lo e cuidar de seus ferimentos, você (no controle de Madison) não pode dar um calmante para Ethan. A personagem te impede, dizendo que o remédio poderia ser perigoso no estado físico e psicológico do homem. Ela não quer matá-lo, mesmo que o jogador queira. Cenas assim são comuns em Heavy Rain, e fazem todo o sentido. A liberdade está lá, porém limitada às situações e ao ponto de vista dos personagens , afinal, eles são o centro da história. É isso que mantém o enredo consistente. Nós é que estamos mal acostumados com a sensação de domínio e controle absoluto que os jogos nos oferecem.

Ainda assim, Heavy Rain permite que o jogador brinque um pouco com as possibilidades. Na mesma cena, você deve decidir como tratar os ferimentos no braço de Ethan. Escolhi passar a pomada para queimadura (só para ver o que acontecia) nos machucados e, logo após o berro de dor e ardência de Ethan, Madison se desculpava, dizendo: “Como sou burra! É claro que não posso passar pomada de queimadura nas feridas!”.


Os quick time events, em uma análise de game design, existem justamente para que os desenvolvedores tenham controle sobre as ações do jogador. Desta forma, é possível que o jogo monitore seus erros e acertos em uma cena e lhe ofereça o resultado adequado para sua performance, mantendo a coerência da narrativa e a continuidade dos fatos, além de toda a carga dramática. É claro que seria bem interessante se o jogo te desse liberdade de controlar seu personagem durante as fugas, ou permitisse guiar o carro em tempo real na cena em que Ethan acelera na contra-mão. Mas já pensou o quão frustrante e difíceis esses momentos poderiam ser?

A proposta de Heavy Rain não é oferecer desafio ao jogador, seja ele casual ou hardcore. Do começo ao fim, é um jogo relativamente fácil. Não existe uma curva de dificuldade, o que pode soar esquisito para um jogo. Não conseguiu passar de um desafio do jogo? Tudo bem, a história vai continuar levando em consideração seu fracasso. É uma possibilidade de jogo, afinal. Em um bom roteiro, não existem personagens que só acertam. Sucesso e fracasso andam juntos, na vida e na ficção.

A ideia é envolver o jogador em um turbilhão de emoções, como se estivesse assistindo a um filme, sem grandes interrupções e com uma fluidez rara nos jogos. Capítulo a capítulo, o jogador vai desvendando fatos sobre os personagens e a trama de forma fluida e progressiva, sem nunca perder o interesse. Em minha experiência com o jogo, eu simplesmente não tinha vontade de parar de jogar. “Só mais esse capítulo”, eu pensava. Além da curiosidade em saber o que aconteceria em seguida, o que é natural quando você está imerso em uma narrativa e se importa com os personagens, o jogo lida com informação de uma maneira muito competente.

Me lembro do meu prazer em jogar Chibi-Robo, para Gamecube, há alguns bons três ou quatro anos. Era um jogo viciante, em que, no controle de um robozinho de brinquedo, você ia explorando a casa de uma família e a cada novo quarto, centenas de opções de interação se abriram ao jogador, algumas das quais davam continuidade ao enredo – bastante cativante também. O mesmo acontece com Heavy Rain. A cada novo episódio, além de você ir relevando novos nós da trama, que servem cono novas peças para um grande quebra-cabeça, há sempre uma série de possibilidades de interação, muitas das quais são totalmente opcionais, mas que também podem trazer novas informações ao jogador.


Por exemplo: há um capítulo no qual você ganha controle sobre um personagem logo após ele acordar de um cochilo. Você não tem objetivos claros, então passa a investigar a própria casa do personagem. Fuça nas gavetas, anda pelos ambientes, abre a geladeira, vai ao banheiro, faz xixi, etc. Embora as ações pareçam arbitrárias, em termos de narrativa elas revelam informações sobre o passado do personagem (encontrar uma fotografia antiga na gaveta), hábitos etc. Em outro momento do jogo, o jogador entra em uma situação de risco neste mesmo local, e caso ele não tenha explorado o ambiente anteriormente, ele terá muito mais dificuldade em saber o que fazer, uma vez que não haverá tempo para isso e você precisa fugir do local.

Existem outros elementos bastante instigantes na mecânica de Heavy Rain, porém, pretendo abordá-los num próximo texto, onde devo falar também de como ele lida com os elementos cinematográficos e roteiro. Melhor assim, por que o texto aqui já está longo demais. Portanto, até lá, jogue Heavy Rain. Compre, alugue, pegue emprestado, passe uns dias na casa do amigo que tem PS3... não importa como, apenas jogue ;)

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