quinta-feira, 18 de março de 2010

Heavy Rain: o peso das escolhas

Como eu havia prometido, pretendo continuar abordando Heavy Rain neste artigo, desta vez com um enfoque maior no roteiro e nos dispositivos dramáticos. Também, prometo um texto mais enxuto. E não se preocupe: estou adquirindo o dom de analisar narrativas com o mínimo de spoilers ou com a ausência total deles, como é o caso aqui.

Há alguns meses tive o prazer de ler o excepcional Story, do Robert McKee, livro sobre cinema, roteiro e narrativa. Ao ler o trecho a seguir, fui correndo ao computador transcrevê-lo, sabendo que seria útil algum dia:

"A verdadeira personagem é revelada nas escolhas que um ser humano faz sob pressão - quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial da personagem. Pressão é essencial. Escolhas feitas sem nenhum risco significam pouco. Se uma personagem escolhe contra a verdade em uma situação em que uma mentira não lhe daria nada, a escolha é trivial, o momento não expressa nada. Mas se a mesma personagem insiste na verdade quando uma mentira poderia salvar sua vida, podemos então perceber que a honestidade está no núcleo da sua natureza".

Como já abordei no texto anterior sobre Heavy Rain, o ato de jogar nada mais é do que tomar uma série de decisões. Contudo, em 99% dos jogos, as escolhas feitas pelo jogador estão mais relacionadas à solução dos problemas e desafios propostos pelo jogo do que à trama e conflitos vividos pelo personagem. Em vez de decisões morais, com conseqüências reais, que exploram os limites psicológicos e emocionais de um personagem, os jogos tendem a oferecer escolhas do tipo “que arma devo usar diante desta situação?” ou “aceito continuar e triplicar meus pontos, mesmo sabendo que corro o risco de perder tudo?”.

Heavy Rain se apóia no conceito apresentado por McKee para desenrolar uma complexa trama e nos envolver com os personagens, ao mesmo tempo em que estamos jogando. Até hoje a estrutura mais utilizada para contar uma história e apresentar um personagem nos jogos é através das cutscenes, que acontecem paralelamente ao jogo de fato, como explicado no artigo da semana retrasada. Os momentos em que o jogador está atirando, pulando, correndo, explorando, enfim, atuando, são, geralmente, os menos relevantes para a narrativa, uma vez que apenas conectam o jogador de um ponto a outro da história – ou de uma cutscene a outra, onde a trama geralmente se desenrola. Em Heavy Rain, a atuação do jogador acontece simultaneamente ao desenvolvimento da história – o jogo é a história. Cada decisão tomada pelo jogador incrementa a história em algum nível ou ajuda a compor a personalidade de um personagem.

O jogador absorve tão bem a história de cada ser humano ali presente, se envolvendo com seus conflitos, medos e desejos, que não é de se estranhar que ele queira o melhor para cada um deles. A verdade do personagem, citada por McKee, é a verdade do jogador, mesmo que isso lhe custe a morte. Por isso é natural que as decisões mais difíceis e as sequências que colocam vidas em cheque sejam tão tortuosas, tensas e impactantes. Essa é a prova máxima de como Heavy Rain funciona como uma boa história, por mais que seu roteiro possa apresentar alguns problemas sérios.

Portanto, não faz muito sentido dizer que Heavy Rain não daria um bom filme, uma vez que toda a sua estrutura (incluindo o roteiro) foi pensada levando em consideração a participação do jogador e a tomada de decisões. Heavy Rain não quer ser cinema, apenas utiliza sabiamente dezenas de recursos técnicos e dispositivos de narrativa que o cinema desenvolveu durante mais de um século de história para incrementar a própria experiência interativa e contar uma boa história. Afinal, qual o problema de tomar emprestado alguns elementos de uma mídia tão poderosa para contar histórias enquanto a interatividade é preservada? Ela pode não existir em excesso, como no exemplo anterior de GTA, mas existe em quantidade suficiente para tornar a experiência significante.

A influência do cinema não se limita aos precisos cortes e ângulos de câmera ou ao ritmo da narrativa. Pela primeira vez vemos um jogo em que os personagens são atores de verdade, que não se limitam a dar vida aos personagens apenas através de ações básicas para gerar ciclos de animação, como correr, pular ou durante cutscenes etc. A expressão corporal e facial está presente em quase todas as cenas, dos diálogos mais banais aos momentos de maior tensão. E tudo soa tão natural para nós que, sem perceber, criamos um elo emocional com aquele ser humano. Apesar do roteiro forçar a barra vez ou outra, o que pode causar a quebra da magia da realidade do jogo, o tempo todo estamos vendo personagens com atitudes e comportamentos tão próximos de seres humanos, criados com base em arquétipos (ainda que não esteja totalmente livre dos estereótipos e dos clichês), que nos identificamos com cada um deles.

É inegável que Heavy Rain possui uma série de defeitos ou simplesmente deve em alguns aspectos, mas suas conquistas e qualidades são tão mais evidentes que não há como não reconhecer o título como revolucionário. É como o surgimento de um novo gênero musical. Nos anos 50, com o nascimento do rock, as pessoas não sabiam definir aquele tipo de som pois nunca tinham ouvido algo parecido e acabavam comparando-o com o blues. O mesmo acontece com Heavy Rain, comparado o tempo todo com o cinema, mas que vem sendo compreendido cada vez mais. Não me surpreenderia se mais jogos seguissem esta tendência, refinando o que foi apresentado pelo jogo da Quantic Dream e descobrindo maneiras eficientes para contar boas e maduras histórias. Estamos presenciando o surgimento de um novo gênero: o drama interativo.

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